Direito Imobiliário

A Multipropriedade Imobiliária e o Julgamento do REsp nº 1.546.165 – SP pelo STJ

por Yasmin Braga

22 de junho de 2018

I – O Julgamento do REsp: Colocação do Caso e das Controvérsias em Torno do Tema em Análise

Segundo Gustavo Tepedino (1993), a multipropriedade, também conhecida como time-sharing ou regime de aproveitamento por turno, constitui uma modalidade de propriedade relativa sobretudo a imóveis utilizados em período de férias e para fins de lazer, nos quais, por meio de um contrato, o aproveitamento econômico do bem é dividido entre os cotitulares em unidades fixas de tempo e ocorre em sistema de rodízio, assegurando-se a cada um o uso exclusivo e perpétuo durante certo período do ano.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça julgou ação paradigmática no que diz respeito à temática da multipropriedade. Em decisão por maioria, a Terceira Turma decidiu que a multipropriedade imobiliária possui natureza jurídica de direito real e que, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento, o coproprietário pode se valer de embargos de terceiro para proteger sua fração cabível.

A causa em tela originou-se a partir da penhora de um imóvel registrado na modalidade de multipropriedade, com base na execução da dívida condominial de um dos coproprietários do imóvel. A recorrente, que é proprietária de 2/52 do referido bem, sentindo-se prejudicada, ajuizou então embargos de terceiro em face da exequente, buscando limitar a execução apenas à parte do imóvel que é de direito do executado, não obtendo êxito até a interposição do REsp em estudo.

Os magistrados até então responsáveis pelo julgamento do pleito descrito entenderam que a relação entre a Autora e a pessoa administradora do imóvel representa uma cessão de direitos, de natureza obrigacional, não configurando, portanto, direito real de propriedade para aquela.

Porém, ocorre que, apesar de haver registro em nome de uma pessoa centralizadora, o instituto da multipropriedade possui diversas outras características determinantes que não foram contempladas nos julgamentos de primeira e segunda instância, cujas análises se deram de maneira simplista, considerando-se a complexidade do caso.

No Superior Tribunal de Justiça, a discussão toma maiores proporções. O Relator, que vota contra o provimento do REsp, vê a multipropriedade como Direito Pessoal relacionado a um Direito Real, este pertencente apenas ao proprietário central. Para sustentar seu posicionamento, utiliza os argumentos de que faltam elementos essenciais de Direito Real Típico à multipropriedade. Aponta, como fatores diferenciadores, a limitação temporal dos direitos característicos à propriedade, a vinculação da destinação do bem, a impossibilidade de um dos proprietários realizar modificações no imóvel e a necessidade de, em caso de cessão de direitos, alertar o administrador do imóvel.

Prossegue, então, argumentando que o ordenamento pátrio adota o sistema de numerus clausus, que, segundo o magistrado, o qual utiliza trecho de 1971 de Pontes de Miranda como base argumentativa, limita a classificação de Direitos Reais taxativamente. Sem esquecer da possibilidade de flexibilização, o Relator utiliza um trecho de produção do professor Frederico Henrique Viegas de Lima acerca da ratio dos numerus clausus, chegando à conclusão de que a adoção de uma “forma livre de criação dos direitos reais” ameaçaria a segurança jurídica nos negócios imobiliários, por ser impossível prever as inovações no ordenamento e suas consequências jurídicas”. Tal linha argumentativa vai de encontro ao exposto no texto do professor em sua novel reformulação, de 2015:

“[…] Desta feita, abrandar ou, até mesmo, abandonar determinados conceitos e preceitos tidos como imutáveis e concretos é de essencial importância. Assim, o princípio de numerus clausus de direitos reais. A superação deste que, também, passa pela tipicidade dos direitos reais, posto que estes estão intimamente ligados à evolução social, uma vez que a inserção de um novo direito visa atender a necessidade econômica da sociedade em determinado momento. Tem-se assim, como ponto cardeal para o surgimento de um novo direito real, a imperiosidade da sua legítima utilidade e rentabilidade.” (VIEGAS DE LIMA, 2015, p. 29)

Em contraposição ao voto do Relator, os outros magistrados entenderam que a multipropriedade trata-se de direito real, dando, portanto, provimento ao recurso. Segundo tal posicionamento, as limitações às quais o Relator referiu-se são meramente acordos disciplinadores da relação entre os multiproprietários, não afetando o caráter de direito real do instituto e a eficácia erga omnes de seu direito durante seu período de utilização, como aponta Gustavo Tepedino. Adentram, também, a flexibilização dos direitos reais, apontando que o Código Civil não prevê vedação à criação de novos direitos reais, como expunha J. M. Carvalho dos Santos já em 1978:

“O princípio mais aceito é o da liberdade das convenções, admitindo-se como direitos reais, não somente os enumerados na lei, senão também todos os que possam resultar das convenções que importem en decomposição do domínio e possam por sua vez formar direitos reais distintos, sem ofensa à ordem pública. (Cfr. FRAGA, ob. cit.,n. 55; PLANIOL, RIPERT e PICARD, ob. cit., n. 48; BAUDRY-CHAUVEAU, ob.cit., n. 193).

Considerar como pessoais os direitos que, como modalidades do domínio, participam de sua substância, é que não é possível, assim como possível não seria deixar esses direitos, que evidentemente não são pessoais, fora do campo dos direitos reais, somente porque não estão compreendidos na enumeração do texto legal, porque isso importaria em admiti-los como desclassificados no seio da legislação, o que é absurdo.

O elemento histórico confirma ser meramente enunciativa a disposição do Código Civil.” (p. 14.)

II – Considerações Acerca da Multipropriedade e do Julgamento em Estudo

Diante do exposto, fica claro que a multipropriedade constitui uma figura jurídica complexa, que conjuga tanto características de direito real como de direito obrigacional. Soma-se a isso o fato de, no Brasil, ainda não existir uma normatização positiva caracterizando-a. Nesse sentido, se colocam em torno da temática uma série de disputas e controvérsias, as quais foram apontadas no tópico anterior, Uma das principais diz respeito a saber qual a natureza jurídica do contrato celebrado. Em outras palavras, se a aquisição celebrada contratualmente limita-se ao direito de uso do imóvel por um determinado tempo ou se, na verdade, foi adquirida uma fração da propriedade em si.

Entendo que a multipropriedade compõe, de fato, um direito real, encontrando suporte no supracitado texto do Professor Frederico Henrique Viegas de Lima. Acredito que os atributos dos direitos reais se harmonizam o instituto, uma vez que o proprietário detém as faculdades de uso, gozo e disposição sobre a parcela ideal do bem, ainda que este seja objeto de compartilhamento pelos multiproprietários por parcelas e períodos de tempo fixos.

Primeiramente, é imperioso ressaltar que, no mundo, existem dois grandes grupos de multipropriedades, as chamadas Multipropriedades Societárias, de direitos pessoais, e as Multipropriedades Imobiliárias, de direitos reais. Esses tipos, apesar de severamente diferentes em alguns aspectos, acumulam características mútuas de grande importância, que definem o que é uma Multipropriedade em sentido mais amplo. A primeira característica, que é a essência de toda a relação, é a periodicidade, que determina a divisão do uso do bem entre os multiproprietários no tempo. A segunda é a perpetuidade da propriedade, significando que o direito de multiproprietário sobre o bem mantém-se pelo tempo, existindo divergências acerca de como isso ocorre entre as espécies. Por fim, a transmissibilidade dos direitos, por não serem personalíssimos. (DE LIMA, 2015)

Para sustentar a afirmação de que a multipropriedade possui natureza de direito real, faz-se necessário que ela seja de natureza “imobiliária”. Inicialmente, cabe dizer que não pode ser de natureza societária, uma vez que uma sociedade não responderia pela execução de um sócio, como é amplamente ensinado pela doutrina de Direito Comercial. Se a afirmação de que o caso trata de direito pessoal correspondesse necessariamente à afirmação de que trata-se de multipropriedade societária, o caso restaria solvido de forma favorável à recorrente, com base no exposto acima, mas o conceito de multipropriedade possui inúmeras variações, comprometendo a contundência do argumento.

A multipropriedade imobiliária é a aquisição de direito real sobre o imóvel, sendo amplamente aceita na doutrina, como explica o professor Frederico Viegas (2015) em trecho de seu texto:

“O adquirente, quando compra determinado imóvel sob esta forma de multipropriedade, adquire um verdadeiro direito real, que pode ser registrado, transferido inter vivos ou mortis causa, hipotecado e passível de que se constitua sobre ele qualquer outro direito real, pleno ou menos pleno. A forma ideal de multipropriedade imobiliária deve conter tudo isto, sendo o direito adquirido um verdadeiro direito real como qualquer outro (p. 13).

[…]

Por certo, a quase unanimidade da doutrina admite a multipropriedade sob a forma imobiliária. E, o cerne da controvérsia está na conformação do direito. Para tanto, foram criadas várias teorias de direitos reais. Sendo certo, ainda, que nenhuma delas atende, na integralidade, a categoria de direitos reais. Ora esbarra na divisibilidade condominial, ora nos numerus clausus de direitos reais e na sua tipicidade (p. 14).”

Coloca-se aqui, então, um segundo ponto polêmico referente à multipropriedade, que é a ideia de numerus clausus e tipicidade dos direitos reais. A parte da doutrina que nega a natureza de direito real do regime de time-sharing alega que, no Brasil, se adota o princípio de que os direitos reais são numerus clausus, de forma que não se admite a criação de novos direitos, devendo-se seguir os tipos já previstos na legislação. Entretanto, quanto a essa questão, corrobora-se com a opinião exposta no argumento vencedor do julgamento. Não se pode engessar as possibilidades de interação social de forma a nunca permitir quaisquer inovações, mesmo que benéficas. O instituto estudado nesta resenha, em nossa percepção, tem efeitos muito desejáveis, principalmente quando utilizado para mitigar a quantidade de imóveis que permanecem vazios na maior parte do ano em áreas turísticas, prejudicando a população local ao inflar o preço dos imóveis.

Nesse sentido, apesar da inexistência de tratamento normativo específico em relação ao contrato de multipropriedade imobiliária, entendo que a propriedade é de caráter multifacetário e mutável. A partir das necessidades sociais e econômicas concretas, vão surgindo novas modalidades proprietárias, cabendo ao Direito reconhecer as inovações e tutelar os interesses delas derivados. Faz-se necessária diante desse contexto, como bem aponta o professor Frederico Viegas (2015), uma redefinição dos institutos jurídicos para que os mesmos possam realizar o direito de uma forma mais justa e objetiva, se amoldando às alterações pelas quais passa a sociedade.

FONTE: ARTHURPOLICE1.JUSBRASIL